Transplante de medula óssea haploidêntico com condicionamento de intensidade reduzida: uma nova opção para idosos
O transplante de medula óssea após um regime de condicionamento é um tratamento potencialmente curativo para uma grande variedade de neoplasias hematológicas e outras desordens não hematológicas. A seleção do doador adequado representa um dos fatores essenciais para o sucesso do procedimento. O sistema HLA é um conjunto de proteínas pertencentes ao DNA humano. Para avaliar o melhor doador a compatibilidade desses genes é testada, sendo o doador HLA compatível e aparentado considerado a melhor opção para realização do transplante de medula óssea. Outra opção para busca de doadores totalmente compatíveis pode ser realizada através do REDOME (Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea), testando a compatibilidade de doadores cadastrados na tentativa de encontrar um doador totalmente compatível não aparentado. Entretanto, a maior barreira ainda consiste no fato de que 40 a 50% dos pacientes não possuem doadores aparentados ou não aparentados totalmente compatíveis. Devido a isso, várias estratégias começaram a ser estudadas na tentativa de vencer a barreira do sistema HLA e realizar o transplante de medula óssea com doadores que não são totalmente compatíveis, devendo apresentar no mínimo 50% de compatibilidade através dos genes do sistema HLA, os chamados doadores haploidênticos. A popularização do transplante haploidêntico (quando há condições clínicas favoráveis e indicação médica) pode ajudar a resolver a questão de pacientes que não tem doador compatível e com doenças oncohematológicas graves e refratárias a tratamentos anteriores que não tem tempo para esperar até encontrar um doador com compatibilidade. Esse tipo de doador pode ser mais facilmente encontrado, já que nosso HLA é formado por uma mistura de genes de nossos pais, podendo encontrar neles uma opção de doador com 50% de compatibilidade. Da mesma forma, filhos (sendo de mesmo pai e mãe) apresentam uma mistura de combinações entre os genes HLA dos pais, sendo também uma opção válida para realização dessa modalidade de transplante de medula óssea. A grande complicação temida de qualquer modalidade de transplante de medula óssea é o risco de rejeição, reduzido nos transplantes de medula óssea totalmente compatíveis. Atualmente, após diversos estudos existe melhor compreensão do transplante de medula óssea haploidêntico e várias estratégias já vêm sendo utilizadas reduzindo as taxas de rejeição com melhor controle da doença do enxerto-versus-hospedeiro (DECH), tornando esta modalidade segura e viável para realização na prática médica. A doença do enxerto contra o hospedeiro é uma doença imunológica caracterizada pelo “ataque” das células da nova medula contra as células do paciente receptor. Após o transplante essas células chamadas linfócitos reconhecem que estão em um ambiente estranho e são ativadas, causando essa reação imunológica que pode se manifestar clinicamente de diversas formas. Os sintomas são heterogêneos e podem ocorrer na pele, olhos, pulmão, trato gastrointestinal, incluindo náuseas e diarréia, fígado, dentre outros. Qualquer modalidade de transplante alogênico já inclui estratégias de prevenção para DECH desde o momento pré transplante. Esta doença é imunológica e caracterizada pelo “ataque” das células da nova medula contra o paciente, porém ela pode ocorrer em graus váriaveis mesmo com a profilaxia sendo utilizada. A DECH é uma complicação tratável e comum, não significando falha do transplante de medula óssea realizado. Por outro lado, ela não deve ser considerada temida no cenário do TMO, pois juntamente com ela existe o conceito de enxerto contra tumor (GVL). Da mesma maneira que os linfócitos do doador atacam as células do receptor, esses linfócitos ativados também são capazes de atacar e erradicar as células da doença do paciente, seja ela leucemia, linfoma, entre outras, que podem ter restado em pequena quantidade no receptor, aumentando a eficácia do tratamento, funcionando como um "medicamento vivo".
Quando o paciente interna para a realização do transplante de medula óssea, ele recebe um protocolo com medicamentos quimioterápicos antes da infusão das células do doador, também chamado de regime de condicionamento, com duração média entre 5 a 7 dias, e que tem como objetivo a destruição da medula óssea doente para abrir espaço para a entrada da medula do doador, o "enxerto", além de imunossuprimir o receptor para que ele aceite as novas células sem rejeitá-las. A escolha do condicionamento (prepararo com quimioterapia ou radioterapia pré transplante) também é pilar essencial no processo de TMO. Vários fatores são levados em conta para a escolha do regime ideal para cada paciente, entre eles: idade, presença de comorbidades, compatibilidade do doador, risco e situação da doença hematológica no momento do transplante e escores utilizados para avaliação do grau de fragilidade do paciente. Esta escolha deve apresentar toxicidade tolerável, alta eficácia e a menor mortalidade possível. Diversas combinações de medicamentos podem ser utilizadas nessa fase, sendo os principais: bussulfano, ciclofosfamida, melfanano, fludarabina, carboplatina ,entre outros agentes quimioterápicos. A irradiação corporal total, chamada TBI, também pode ser adicionada e utilizada em várias doses diferentes. A dose das medicações podem variar, e de acordo com a intensidade das combinações e potencial em causar a supressão da medula óssea do receptor eles são classificados como: mieloablativos, não-mieloablativos e regimes de intensidade reduzida (RIC). A definição de condicionamento mieloablativo inclui aqueles com combinações de quimioterapia e/ou radioterapia com maior intensidade, levando a destruição da medula óssea do paciente de forma irreversível. Nos regimes não-mieloablativos, o grau de imunosupressão é menor, levando a redução das séries vermelha, branca e plaquetária (citopenias) de forma mínima, com potencial de recuperação medular mesmo sem a infusão de células tronco do doador. Atualmente, com o envelhecimento da população mundial, chegando a idades avançadas cada vez com maior qualidade de vida e ausência de comorbidades que limitem suas atividades diárias, também houve aumento de casos de doenças oncohematologicas, principalmente leucemias e síndromes mielodisplásicas mais prevalentes nesta idade. Assim surgiu o conceito de condicionamento de intensidade reduzida (RIC), sendo um estágio intermediário entre regimes mieloablativos e não-mieloablativos, resultando em citopenias potencialmente prolongadas requerindo suporte com células tronco hematopoiéticas, porém com doses menores que as utilizadas nos já descritos mieloablativos. Essa nova modalidade aparece objetivando reduzir as toxicidades e complicações pós transplante, que são maiores quanto maior a dose de medicações utilizadas, porém mantendo eficácia para alcançar taxas de sucesso satisfatórias, principalmente em doenças refratárias ou recidivas, principalmente nas leucemias agudas. Os regimes de menor intesidade (RIC e não-mieloablativos) são eficazes também pois tem como arma o efeito do enxerto contra o tumor, tornando-se uma opção para pacientes idosos ou que por outros motivos eram anteriormente considerados inelegíveis para o transplante de medula óssea (TMO) devido ao alto grau de toxicidade em regimes mieloablativos.
Há aproximadamente 10 anos, indivíduos com mais de 55 anos eram completamente excluídos de qualquer terapêutica que envolvesse o transplante de medula óssea devido a preocupações com relação à toxicidade do procedimento. No Brasil, a experiência com tal modalidade (RIC) vêm aumentando, em combinações mais comumente utilizando Fludarabina, Bussulfano, Ciclofosfamida e TBI, com o objetivo de manter o sucesso do tratamento contra a doença, diminuindo a chance de recaída, porém preservando o paciente no que diz respeito a complicações, índice de mortalidade e manutenção da qualidade de vida, já com diversos trabalhos e evidência científica suficiente para confirmar a segurança do tratamento nesta faixa etária.
Com todo avanço e melhor compreensão no assunto, atualmente podemos ser capazes de expandir o uso desta terapia a pacientes de idade mais avançada, oferecendo uma nova opção à população que mais precisa deste tipo de tratamento.
Texto elaborado por Dra. Maricy Almeida Viol Ferreira Lopes, médica hematologista e membro da equipe de transplante de medula óssea da Bio SANA’S, do Hospital São Camilo Ipiranga e IBCC (Instituto Brasileiro de Controle do Câncer)
Referências Bibliográficas:
(1) Gyurkocza B, Sandmaier B.M.Conditioning regimens for hematopoietic cell transplantation: one size does not fit all.Blood 2014.1249(3): 344-353.
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(3) Bertaina A., Andreani M. Major histocompatibility complex and hematopoietic stem cell transplantation:Beyond the classical HLA polymorphism. International journal of molecular sciences 2018.19(621): 1-14.
Saiba mais:
https://www.biosanas.com.br/especialidade-info/1/transplante-de-medula-ossea